Fernando Pessoa - Álvaro de Campos

Poesia
De todos os heterônimos de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos é o que me provoca mais identificação e, ao mesmo tempo, mais me atormenta. A multiplicação ou desintegração da personalidade de Fernando Pessoa, através de seus heterônimos: Ricardo Reis, Alberto Caeiro e até mesmo de Bernardo Soares no "Livro do Desassossego" é um dos fenômenos mais complexos da literatura moderna e, certamente, muito ainda há de se aprender e discutir sobre a sua obra poética.

Discutir Fernando Pessoa em um espaço tão limitado é quase ridículo (todas as cartas de amor são ridículas), mas queria apenas dividir este poema que em intervalos regulares, geralmente nesta época do ano, vem me assombrar com sua beleza e tristeza incomparáveis.

Aniversário
(Álvaro de Campos, 15-10-1929)

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui --- ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,
com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado---,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Para, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Comentários

Anônimo disse…
Gostei de ver, Sr. K!

A produção do mês de Maio está aumentando, isto quer dizer que as suas idéias estão aflorando com mais facilidade (e sempre com elegância e ótimo Português).
Faço votos para que você continue desenvolvendo esse lado das "ciências inexatas".

Abraços,
RH.
Anônimo disse…
Querido K.,

Estamos ainda nos anos de comemorações. Assim será por muito tempo.
Barros (RBA) disse…
Sem comentários, mas mantendo uma certa melancolia, gostaria apenas de compartilhar este belo poema:

Cul de Lampe
Álvaro de Campos)

Pouco a pouco.
Sem que qualquer coisa me falte,
Sem que qualquer coisa me sobre,
Sem que qualquer coisa esteja exatamente na mesma posição,
Vou andando parado,
Vou vivendo morrendo,
Vou sendo eu através de uma quantidade de gente sem ser.
Vou sendo tudo menos eu.
Acabei.

Pouco a pouco,
Sem que ninguém me falasse
(Que importa tudo quanto me tem sido dito na vida?)
Sem que ninguém me escutasse
(Que importa quanto disse e me ouviram dizer?)
Sem que ninguém me quisesse
(Que importa o que disse quem me disse que queria?),
Muito bem...
Pouco a pouco,
Sem nada disso,
Sem nada que não seja isso,
Vou parando,
Vou parar,
Acabei.

Qual acabei!
Estou farto de sentir e de fingir em pensar,
E não acabei ainda.
Ainda estou a escrever versos.
Ainda estou a escrever.
Ainda estou.

(Não, não vou acabar
Ainda...
Não vou acabar.
Acabei.)

Subitamente, na rua transversal, uma janela no alto e que vulto nela?
E o horror de ter perdido a infância em que ali não estive
E o caminho vagabundo da minha consciência inexeqüível.

Que mais querem? Acabei.
Nem falta o canário da vizinha, ó manhã de outro tempo,
Nem o som (cheio de cesto) do padeiro na escada
Nem os pregões que não sei já onde estão –
Nem o trovão súbito da madeira das tabuinhas de defronte no ar de verão
Nem... quanta coisa, quanta alma, quanto irreparável!
Afinal, agora, tudo cocaína...
Meu amor infância!
Meu passado bibe!
Meu repouso pão com manteiga boa à janela!
Basta, que já estou cego para o que vejo!
Arre, acabei!
Basta!
nostodoslemos disse…
17/05...

Interessante!

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